Com a Rota da Seda, a China entra no vácuo aberto por Trump
Dal
Marcondes 20/07/2017
por Carlos Drummond, especial
para Carta Capital —
Pequim conecta 66 países em três continentes com o canteiro de obras
global. O Brasil de Temer despreza os investimentos
O Deutsche Bank, maior banco da Alemanha,
anunciou em maio sua participação, com 3 bilhões de dólares, no financiamento
do projeto chinês das novas Rotas da Seda, de conexão com países da Ásia,
África e Europa por ferrovias e estradas, ao Norte, e por mar, ao Sul.
A decisão, que
deverá ser acompanhada de iniciativas semelhantes de várias instituições
financeiras, é uma resposta positiva ao chamamento do presidente Xi Jinping de
unir aquele que é considerado o maior programa de infraestrutura do mundo ao
plano europeu de investimento, conhecido como Plano Juncker. Além de vias de transporte,
serão construídos portos, aeroportos, barragens, dutos de petróleo e gás, obras
para geração e distribuição de eletricidade e telecomunicações, sistemas de
água e esgoto e habitações.
DPA/FotoArena
Na reunião de cúpula em Pequim, Xi Jinping, o anfitrião, Vladimir Putin,
presidentes de vários países e um funcionário brasileiro do 3º escalão
A união dos
projetos chinês e europeu de investimentos significa a ocupação de parte do
espaço deixado com o abandono, pelos Estados Unidos, por iniciativa de Donald
Trump, dos tratados Transatlântico e Transpacífico,
propostos pelo ex-presidente Barack Obama para barrar a influência econômica do
país oriental no mundo.
A decisão do
Deutsche Bank foi anunciada duas semanas depois da realização do Belt and Road
Forum, em Pequim, sobre as Rotas da Seda, convocado por Xi Jinping e
prestigiado por 29 chefes de Estado, inclusive o presidente Vladimir Putin, da
Rússia. A América Latina foi representada por dois presidentes, Mauricio Macri,
da Argentina, e Michelle Bachelet, do Chile. O Brasil enviou só seu secretário
da Presidência da República.
O pouco caso
brasileiro para com o projeto chinês, considerado a maior oportunidade de
investimentos e negócios internacionais das últimas décadas e de grande
significado político e diplomático, ocorre no quarto ano de economia doméstica
estagnada, sem que o governo consiga colocar em pé nem mesmo seu acanhado
programa de infraestrutura.
Lançada em 2013, a
iniciativa adota o mesmo nome da estrada construída entre 206 a.C. e 220 d.C.,
durante a dinastia Han, e tem potencial para ser a maior plataforma mundial de
colaboração regional, segundo Kevin Sneader, presidente da consultoria McKinsey
na Ásia. Abrange 66 países, com 65% da população do planeta, cerca de um terço
do PIB e um quarto de todo o transporte de mercadorias e serviços.
Só no ano passado,
os projetos e negócios realizados geraram 494 bilhões de dólares, contabiliza a
consultoria PwC. Números preliminares da McKinsey indicam que os novos empreendimentos
anunciados em 2016 somaram 400 bilhões de dólares, valor 2,1% acima do
previsto, mas eles podem superar em mais de 10% as projeções, prevê a
consultoria.
Banco de
Investimento em Infraestrutura, criado pela China, é um dos financiadores das
obras (Foto: Li Xin/Xinhua via Zuma/FotoArena)
A PwC estima que a
China gastou o equivalente a 3 trilhões de dólares em infraestrutura no ano
passado, valor 10% acima de 2015 e 40% superior à média dos últimos cinco anos.
Os investimentos fazem parte da estratégia definida por Pequim para enfrentar
tanto as dificuldades econômicas internas quanto a Grande Recessão mundial e
tem força suficiente para conduzir a uma nova etapa da globalização, avaliam
vários economistas.Marcos Antonio Macedo Cintra, do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (Ipea) e Eduardo Costa Pinto, da Universidade Federal do Rio
de Janeiro, explicam a estratégia no artigo “China em Transformação: Transição
e Estratégias de Desenvolvimento”. Apesar da desaceleração, dizem, a economia chinesa permanece uma das mais
dinâmicas do mundo e continua a criar entre 12 milhões e 13 milhões de postos
de trabalho urbanos ao ano.
Com o aumento da
taxa de investimento, de 40% do PIB para 47%, entretanto, o crescimento ficou
desequilibrado, pois gera capacidade ociosa em inúmeros setores produtivos e
passa a depender da construção de obras gigantescas, da expansão do mercado
imobiliário, do endividamento das províncias e dos governos locais, bem como da
elevada alavancagem de alguns segmentos dos setores bancário e não bancário.
Busca-se, assim, um
novo regime de crescimento sustentável, ancorado em um dinamismo menos
intensivo em capital e em energia, e ainda um novo contrato social (um Estado de Bem-Estar Social com
características chinesas) para a redução das desigualdades sociais e regionais
e a implementação de maior cobertura no sistema de saúde pública e de
previdência, sublinham os economistas.
A provisão de bens
públicos universais, o desenvolvimento de uma urbanização e uma
industrialização com menor impacto sobre o meio ambiente, a ampliação da renda
e do consumo da população são os pilares do planejamento estratégico que visa
reformar o regime de crescimento nos próximos anos.
“Esse caminho de
desenvolvimento, ainda em construção, pressupõe um processo de aprendizado
contínuo com avanços e recuos. Articula uma estratégia nacional, inserida
regional e globalmente, que visa tornar a China um país moderno, rico e
poderoso. As políticas macroeconômica, industrial, de ciência e tecnologia,
externa e de segurança são direcionadas pelo Estado para a construção de uma
estabilidade política, a melhora das condições de vida do povo chinês e a
reconquista de uma posição internacional autônoma.”
Os megaprojetos
internacionais de infraestrutura são, conforme destacado acima, um dos eixos da
transição interna e, ao mesmo tempo, da redefinição das relações com o restante
do mundo, por desencadearem um processo de reconfiguração da ordem global. Não
se trata, entretanto, de uma opção tirada da cartola, como provavelmente
imaginam aqueles analistas incansáveis na elaboração reiterada de previsões
furadas de derrocada do país asiático por insubmissão ao livre-mercado.
“A construção de
infraestrutura para fomentar o comércio e a estabilidade social foi uma pedra
fundamental da própria prosperidade de longo prazo da China durante mais de 2
mil anos. A política recentemente enunciada baseia-se na história de antigas
redes de comércio e transmissão de cultura entre esse país, a Ásia Central e o Sudeste Asiático. A Europa
está no longínquo terminal Oeste dessas redes”, explica o economista Peter Nolan,
professor da Universidade de Cambrige e consultor do governo chinês, no
livro Understanding China: The Silk Road and the Communist Manifesto.
O trem Golden Eagle
percorre trecho recém-construído da nova Estrada da Seda, entre a Ásia e a
Europa
O governo não abre
mão da estratégia político-econômica nem da sua permanente revisão e
reformulação, em sintonia com a dinâmica da realidade. A planificação
estratégica visa à harmonia, ou seja, o equilíbrio de forças, destacam Cintra e
Pinto. Nesse sentido, os interesses privados ou capitalistas não devem ser
poderosos o suficiente para ameaçar a supremacia incontestável do Estado, que
mantém amplo conjunto de empresas e bancos públicos e regula rigorosamente
diversas esferas econômicas e as relações com o exterior.“Os mecanismos de
mercado – a taxa de juros, a taxa de câmbio, a tributação, os preços – são
considerados um instrumento e não um fim em si mesmos e a abertura assume a
condição de eficácia que conduz a uma diretriz operacional, qual seja, alcançar
e ultrapassar os concorrentes estrangeiros”, esclarecem os autores do artigo.
As adequações da
estratégia ocorrem por meio de reformas, que consistem em mudanças feitas de
modo integrado, como detalham os economistas Michel Aglietta e Guo Bai, no
livro China’s Development: Capitalism and Empire: “A reforma é a transformação
conjunta de estruturas e instituições econômicas. É pluralista e alimenta-se
das contradições que gera, em um processo interminável. Não tem qualquer
referência em relação a qualquer modelo ideal.
O seu significado
não é teleológico; é imanente à prática histórica. Graças à continuidade da
liderança política, a reforma pode ser gradual, informada por uma visão de
longo prazo e testada no experimento pragmático. O planejamento estratégico
visa à harmonia, que é o equilíbrio de forças que contribui para reforçar
a soberania do Estado. Consequentemente,
interesses capitalistas nunca serão tão poderosos a ponto de ameaçar a
supremacia primordial do Estado. É por isso que o Estado mantém um grande
domínio de propriedade soberana e regula firmemente as finanças”.
O avanço chinês foi
muito além das elucubrações ocidentais. Transcorrido um quarto de século desde
as reformas iniciadas entre 1989 e 1990, chama atenção Nolan, o cenário parece
muito diferente daquele amplamente previsto e desejado no Ocidente. “O colapso
do ‘Império do Mal’ na União Soviética não foi seguido pelo colapso do regime
do Partido Comunista na China.
A ‘mudança de
regime’, que muitas pessoas ainda esperam e trabalham para acontecer, não
ocorreu. O PCC tem 87 milhões de integrantes e em 2021 celebrará o centenário
da sua fundação. Sob seu comando o país experimenta a era mais notável de
crescimento e desenvolvimento da história moderna. Sob o guarda-chuva protetor
da estabilidade política e social, conquistou três décadas de crescimento em
alta velocidade.”
Com o controle
absoluto sobre o sistema político, o Partido Comunista Chinêsrestaurou a
legitimidade anteriormente personificada no imperador, acrescentam Cintra e
Pinto. Ele prolongou e radicalizou uma tradição milenar ao criar uma espécie de
“dinastia mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos
morais confucianos do período imperial. (Carta Capital/Envolverde)
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